19.3.14

Duzentas

capítulo sexto


Depois de semanas de calor furioso, amanheceu um dia tristonho. A tempestade que caiu pesada durante a noite encheu o jardim de poças cuja lama o Major parecia empenhado em trazer, pouco a pouco com as patas sujas, até a varanda. Sem a atenção do dono, o velho vira-latas deu de zanzar perdido de um lado para o outro.
     Dona Dalva correu para tirar a leiteira que ferveu e transbordou no fogão. Encheu a caneca, decepcionada com o próprio relaxo, sentou-se à mesa, preparou sem vontade um sanduíche. Comia pão de forma porque a casa não tinha mais quem buscasse pão fresquinho todas as manhãs. Seu Jonas ainda dormia depois de trabalhar até os primeiros raios de sol rastejarem por baixo da porta da garagem. Flutuava sobre a casa um silêncio cansado.
     Quase hora do almoço foi que ele apareceu na cozinha atrás de algo para comer, a cara amassada, os olhos pequenos de quem não dormiu o tanto que deveria. Ela colocou um pratinho sobre a toalha plástica, buscou a garrafa térmica.
     Sem aviso, com a boca ainda cheia de pão com presunto, seu Jonas falou:
     – Terminei minha lista.
     ... e continuou mastigando, encurvado sobre a mesa. Dito do jeito que foi, o anúncio não soou como conquista, como um objetivo atingido depois de dias de busca febril, mas só como uma constatação indiferente, até meio derrotada. Do bolso da camisa ameaçava cair uma caderneta espiral.
     – Hoje mesmo, depois do almoço, começo a segunda parte do experimento. Vou continuar vivendo a vida normalmente, mas só posso usar essas palavras.
     “Vivendo normalmente”. Dona Dalva olhou para os galhos caídos na calçada, vestígios da chuvarada, e suspirou. As benditas duzentas. Maldita revista. Minha Nossa Senhora da Conceição. Pela primeira vez em quarenta anos de casamento, não sabia o que dizer.
Ficaram os dois sem saber como continuar conversa. Seu Jonas, raspando com as mãos as migalhas da toalha, parecia outra pessoa. Nesse espaço de dias, tornara-se calado, parecia até que as palavras lhe custavam alguma coisa. E algo, uma faísca nova, brilhava no fundo dos olhos cansados.
     Dona Dalva chacoalhou a cabeça para livrar-se desses pensamentos, ralhou com o Major que queria entrar com as patas enlameadas e, puxando o martelinho de baixo da pia, começou a cuidar dos bifes do almoço. O cachorro deitou-se para esperar que ganhasse um deles.
     Depois do almoço. Duzentas palavras. Homem dentro de casa não presta. Minha santa Rita.

* * *
Peço perdão pela demora em postar este capítulo. Estive, nos últimos dias, envolvido no lançamento da nova edição da Parênteses, uma revista literária, projeto bonito que estou tocando com muita gente talentosa. Fica a dica -e o link-, inclusive, para quem ainda não conheceu.

E, ah!, faltam mais dois capítulos! Estamos quase, obrigado pela paciência ;)

3 comentários:

J. Messias disse...

Poxa, só mais dois capítulos??? Mas, vai ter muitas outras histórias depois, certo?

ex-amnésico disse...

Bonito layout, o da Parentesis.

Seu?

Juliana Canoura disse...

Ei, posta o resto da história! :)

Tão boa, que ela me pega nas esquinas do pensamento, vez ou outra, puxado por algum motivo bobo.

Por favor, termine-a! :)