10.6.12

São essas vezes


A vez em que cheguei em casa, empolgado com um mundo novo que se abria diante dos meus olhos de menino, e tirei da minha mochila a cartilha ainda cheirando a nova e abri na primeira lição e li para minha mãe, encantada, as primeiras palavras da minha vida, que tinha acabado de aprender naquela tarde de verão.
     A vez quando, entre os raios de sol que pendiam dos galhos de uma araucária, eu vi uma gralha azul e me senti abençoado e, quando duvidaram de que eu tinha visto em plena cidade algo tão raro a ponto de se tornar só uma história que se ensina nas escolas, tive a segurança de responder simplesmente "eu senti que era".
     A vez em que primeiro subi na minha moto e fomos para a estrada e senti a fragilidade da minha vida e a liberdade de não estar somente passando pela paisagem, mas fazendo parte dela, sendo filho do vento, gritando de excitação dentro do capacete debaixo da chuva leve que caía.
     A vez quando, numa quarta-feira sem nada de especial, andando pela rua num final de dia eu me senti subitamente feliz de uma felicidade tranquila e serena, subitamente consciente, e sorri, sem uma testemunha sequer, o sorriso mais satisfeito que lembro de ter dado em minha vida e que desde então, ainda esse mesmo sorriso, volta ao meu rosto em certas ocasiões.
     A vez na qual, depois de ter resistido a uma tentativa de assassinato numa viagem solitária, corri meio continente de volta para casa e encontrei minha mãe na ainda de pijama, com um bule de café fumegante no fogão e, sentado à mesa, no silêncio de quem não sabe ou não quer dizer nada, senti como nunca a força delicada do amor de quem nos cria para entregar ao mundo.
     A vez em que eu, entre amedrontado e ansioso, diante dos meus amigos e da minha família, olhava para as portas da igreja que se tinham acabado de abrir e ela caminhou em minha direção e eu soube que não desejaria da vida, daquele em momento em diante, nada mais que não seja dedicar àquela mulher até o último suspiro que Deus me permitir dar neste mundo.
     A vez em que, mesmo depois de já ter ouvido várias vezes, eu realmente ouvi a Nona Sinfonia de Beethoven e senti o corpo arrepiado e chorei e agradeci em silêncio Àquele que deu ao Homem a capacidade e a sensibilidade para criar coisas tão maravilhosas.
     A vez numa manhã nublada e um pouco fria em que encontramos um casco de tartaruga entre os galhos que o mar arrastou para a praia numa noite de tempestade e pensei em quanto não havia vivido aquele animal, em que segredos submarinos não guardava aquele casco silencioso, até que viera morrer nas areias perto da casa de meu pai.
     A vez, depois de meses longe da escrita, anestesiado por falta de tempo, de inspiração ou mesmo de vontade, em que resolvi checar, num gesto meio mecânico, as redes sociais e chorei ao encontrar uma mensagem de que uma pessoa, uma mãe de família que me leu e lembrou-se de um sonho e começou ela também a escrever.
     São essas vezes, essas pequenas ocasiões luminosas, muito mais que os grandes intervalos entre elas, que nos fazem quem somos. São essas vezes, e ainda muitas outras de que não me lembro agora e umas tantas sobre as quais, de tão sublimes e fugidias, não conseguirei jamais escrever.
     São essas vezes.