8.4.09

Camilinho, o degustador

A história do Camilinho começou como quase todas as histórias dos gênios da Humanidade: em casa, aos poucos, meio por acaso. O talento belo dia apareceu e então foi crescendo, aparecendo até que saiu pela porta da sala e ganhou o mundo.
     Só que o Camilinho não era músico, pintor, astrofísico, cientista maluco ou essas coisas que nos vem à cabeça quando se fala em "gênio". O talento dele morava na língua. E não a língua metafórica, a arte da retórica, essas coisas, não: era na língua mesmo, a língua propriamente dita. Camilinho reconhecia o gosto de qualquer coisa.
     Qualquer coisa. Qualquer. Qualquerzinha mesmo.
     Começou, como eu disse, em casa, aos poucos, com comida de casa, essas comidinhas do nosso dia-a-dia. A mãe punha a frigideira na mesa e ele:
     — Oba, coxão mole!
     Só aí já era coisa de se assombrar, um garoto de sete anos que sabia o que era patinho e o que era coxão mole, cheiro-verde ou manjericão. Mas o Camilinho foi mais longe, foi desenvolvendo o talento, e chegou nos requintes da coisa.
     — Esse peixe só andava comendo ração de segunda, coitado.
     — Mãe, eu já disse que não gosto desse sal do Rio Grande do Norte!
     — Que galeto nada! Isso aqui é galinha das sem-vergonha, criada em quintal na vila Osternack.
     — Ah, arroz parbolizado tipo B com sal e um toquezinho de alho e feijão carioquinha do, vejamos... norte do Paraná. Boa safra.
     — Hum, esse é um ótimo Nissin galinha caipira, preparado com água da torneira em panela de cobre, fogo brando. Cozimento no ponto, três minutos. Perfeito.
     Teve até a vez que ele desvendou um crime: o pai voltou da rua comendo um espetinho e o Camilinho descobriu que aquele contrafilé era, na verdade, o gato sumido da Cleusa. Daí para frente foi ganhar o mundo.
     Tornou-se jurado de concursos de culinária, deu palestras para chefs cozinheiros gourmands enófilos madames, virou convidado de tudo quanto é programa de tevê, ficou unha e carne com a Ana Maria Braga. E mais: prestou assessoria na criação de menus de vários bistrôs na França e teve que recusar as propostas de ir para a Bélgica degustar cervejas porque era menor de idade.
     A coisa toda ia muito bem até o dia, o fatídico dia, em que ele resolveu meter o nariz –e a língua– onde não fora chamado. Comendo um cachorro quente com os amigos na esquina –que, apesar de ter degustado as maiores iguarias do planeta, o Camilinho ainda gostava do bom o velho hot dog da dona Nadir–, nosso geniozinho teve uma iluminação súbita: decifrou a composição da salsicha.
     Da salsicha!
     Dias depois, o Camilinho desapareceu depois de uma pelada no campinho. Desespero no bairro, polícia, deu no Jornal Nacional, o Louro José fez um apelo ao vivo pedindo a libertação do amigo. Foi encontrado pela Interpol num frigorífico abandonado perto de Blumenau, dentro da câmara fria, em estado de choque. Nunca mais foi o mesmo, perdeu o gosto pela comida, desfez os contratos, passou a comer até o sal iodado do Rio Grande do Norte e a ser enganado nas churrascarias sem reclamar.
     A mãe não sabe que ameaças fizeram ao garoto, mas reparou que, desde que largou a vida de degustador, ele mantém uma certa distância de minhocas e entra em pânico quando vê uma senhora obesa de tranças e sotaque alemão.
     Coitado do Camilinho. Não se mexe assim fácil com os segredos da Humanidade.

4.4.09

Diários de um sapo

Outro dia, no horário de almoço, passei em frente a uma obra onde os operários descansavam preguiçosos ao sol —o que é impensável para quem, como eu, tem pele sensível e não pode sair da lagoa sem filtro solar fator 60— e ouvi um grito que me fez o coração quase enroscar na língua. Ficaria até arrepiado, se tivesse pelos:
     — Ô, princesa!
     Princesa: a palavra mágica, a chave das portas da realeza. Aqueles fiu-fius —e uns tantos outros termos que não comentarei, pois sou sapo de costumes— soaram como trombetas, anunciando a minha libertadora. Mal podia esperar o suave toque daqueles lábios reais, que me demitiriam dessa vida de empregado batedor de cartão: um beijo e eu seria príncipe, finalmente!
     Doce engano.
     Desculpem a grosseria, mas não vi nada de princesa na senhorita alvo do chamamento. Não da minha ideia romântica de princesa, pelo menos. Se sobravam carnes saindo das roupas de tamanho um tanto inadequado, faltavam os finos tratos de uma filha da aristocracia. Não tinha nem ao menos uma aia de companhia, quem dirá andar carregada por servos embaixo de dosséis de seda.
     Definitivamente, pedreiros não entendem nada de princesas.

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Faz tempo que nosso amigo sapo não escrevia por aqui. Clique aqui para ler mais sobre as dificuldades de ser anfíbio hoje em dia.