9.12.09

Na livraria

Série especial de aniversário
(publicado originalmente em 10.1.2008)

Quando a vi, ela estava na seção dos nacionais. Tinha acabado de passar pela poesia e começava agora a olhar os títulos de prosa. Foi o incentivo que eu precisava para deixar de lado as gôndolas centrais, das sugestões da loja —que eu nunca aceito—, e também me aventurar entre as prateleiras.
     Demorei um pouco num livro do Drummond para dar a ela alguma dianteira. Mesmo de rabo de olho foi possível ver que era bonita. Os sapatos e a bolsinha colorida denunciavam um par de olhos de menina por trás dos óculos. Ela avançou até Clarice Lispector: bom sinal, leitura de mulher forte, independente. Avancei, enfim, para a mesma prateleira e fingi interesse num Jorge Amado.
     Passando os dedos finos, mãos delicadas, pelas lombadas, ela analisou com cuidado o Q e o R. Rachel de Queiroz, Mario Quintana, Nelson Rodrigues, Guimarães Rosa. Talvez procurasse algo, mas, pelo visto, não encontrou.
     Então, de um salto, ela pulou para o final dos brasileiros. Pegou um do Verissimo pai, Erico, e olhando alguns Cony, eu senti um rastro suave de perfume. Decidi chegar mais perto. Machado de Assis, o bom e velho, me ofereceu uma posição estratégica, logo ao lado dela. Senti melhor o cheiro, doce na medida certa.
     Ela devolveu o livro e passou os olhos pelos do Luis Fernando, Verissimo também. Não se interessou por nenhum. Será que, como eu, ela já tem todos e está esperando o próximo lançamento? Não pode ser só coincidência. Um sorriso que quase quer aparecer no cantinho dos lábios mostrou que, sim, é uma garota bem-humorada.
     Num movimento gracioso, ela virou para a prateleira de trás e entrou no domínio dos estrangeiros. Eu me demorei ainda um pouco nos nacionais e, de costas para ela, pude ver melhor seus cabelos. Pretos, macios. Nem alta nem baixa: sob medida.
     Li a surpresa nos olhos dela quando viu os Borges e pensei, triunfante: "tolinha, ainda não sabia que estão relançando as obras completas dele". Eu pensava que teríamos muito o que conversar e então ela se abaixou, para ver melhor o Calvino. Será que ganharia algum ponto se contasse a ela que tenho quase todos?
     Decidi tomar a dianteira e fui até o Dostoievski, no fim da estante. Quando passei por ela senti novamente o perfume e imaginei o calor do seu corpo. Não demorou muito até que ela, ignorando o García Marquez, passasse por mim e fosse para o outro lado da estante. "Instigante", esta era a palavra.
     A estante baixa e a posição estratégica do Umberto Eco permitiram que eu ficasse frente a frente com ela. Tinha os olhos baixos, provavelmente na letra J, quem sabe James Joyce. Dei a volta também. Um Hemingway amigo ofereceu-me refúgio, rápido. Estiquei os olhos e vi que errei: não era Joyce, era Kafka que ela olhava. Ela umedeceu os lábios com a língua e eu, num gesto atrevido, atravessei o braço diante dela, os corpos quase se tocando, para alcançar um Llosa.
     Talvez por imaginar que eu tivesse algum problema —sem notar, eu lia a capa de ponta-cabeça—, ela fugiu para longe, pediu socorro ao Pamuk. Decidi impor o ritmo da coisa. Fui ganhando terreno e empurrei-a para o Proust. Calor no fundo da livraria, ela levantou os cabelos num coque improvisado —ai, meu Deus!—, mostrando a pele branquinha do pescoço.
     Demoramos bastante no Saramago, o velho Zé ajudou a acalmar os ânimos. Não tentei dessa vez nada mais ousado. A certo ponto, ela fez um "hum" de interesse —o que para mim foi o suficiente para adivinhar que tinha boa voz— e, em seguida, deu um passo para o Tolstói.
     Virginia Woolf. Estavam acabando os livros. Decidi pedi-la em casamento, assim de uma vez: "oi, quer casar comigo?". Juntaríamos nossas bibliotecas e viveríamos felizes para sempre!
     Mas então ela deu uma guinada brusca e voltou para as gôndolas centrais, as horrendas gôndolas centrais, dos best-sellers. Pegou o último do Paulo Coelho e foi para o caixa. Fiquei ali, meio sem reação e, pela vitrine, eu a vi indo embora. Não corri atrás.
     Posso ter perdido a mulher da minha vida, mas Paulo Coelho não entra lá em casa.

4 comentários:

Stephanie disse...

hoje em dia eu confesso que quando li esse texto pela primeira vez eu pensei assim: 'nossa! que menino exigente'.
é que li bastante muita coisa que você cita nesse texto, inclusive paulo coelho, mas esse eu nunca comprei, aliás nem vou mais a essa altura, hahahaha

Também fiquei feliz porque foi aí que descobri que você gosta do Calvino.


beijos

Cissa disse...

putz! eu lembro desse.
e é um dos melhores pra mim. =)

Elga Arantes disse...

Muito bom!

Também não gosto de Paulo Coelho, mas digo isso por dois livros dele que li.

Mas acho que a gente é muito contaminado pelo senso comum, que sempre é muito preconceituoso.

Maíse Bentinho disse...

Nossa! Paulo Coelho também não entra na minha biblioteca... Mas nem se eu perder a sanidade!