16.2.09

Caminho suave e bolo de cenoura

Naquele dia, abri a porta de casa e entrei na sala, triunfante. Sentia como se fosse um César recém-chegado da campanha vitoriosa, de coroa de louros, trombetas e tudo. Se soubesse latim, teria feito pose e dito "veni, vidi, vici"; mas na época eu ainda estava aprendendo o português, e isso já era de bom tamanho.
     Meu uniforme novo —camiseta amarela de bichinho estampado, calça azul marinho e Conga da mesma cor, porque era proibido tênis branco ou colorido— servia de casaca de Napoleão. Parada na porta da cozinha com uma tigela de cobertura de chocolate nas mãos, minha mãe notou que havia algo de estranho no ar —e ainda não era o bolo queimando— e teve o respeito de não rir do ridículo da situação.
     Joguei a lancheira de lado, fui até a mesa da cozinha com meus passos de general vitorioso, afastei a toalha, assoprei um resto de farinha e coloquei ali minha mochila. De dentro dela, com um gesto solene, puxei meu troféu.
     Era um livro grande, colorido, encadernado em brochura: chamava-se Caminho Suave, a minha cartilha. Abri na primeira lição. E ali, com a melhor voz de locutor de rádio que meus cinco anos me permitiam fazer, li a primeira palavra de minha vida:
     — Ai.
     Como nada me doía, presumo que eu tenha começado lendo ficção. Minha mãe aplaudiu, limpou as mãos no pano de prato, apressada, e sentou ao meu lado. Fiz desfilar, então, naquele fim de tarde, minha tropa: uma legião —meia dúzia, na verdade— de combinações de vogais, que dançaram aos pares, rodopiando entre a fumaça do bolo de cenoura que minha mãe, emocionada que estava, estava quase esquecendo de tirar do forno.
     — Ei.
     — Oi.
     — Ui.
     E então, em silêncio, tomei um fôlego maior, como o trapezista que chega no ápice do show, no salto mortal sem proteção, e encerrei com um gran finale: uma palavra de três –três!– letras, homenagem ao meu pai, mineiro:
     — Uai!
     Mais que um general, eu era um Colombo diante de um novo mundo. Repeti a lição várias vezes, orgulhoso, inclusive para a Elisa, vizinha do apartamento da frente. Esperei ansioso a hora do meu pai chegar do trabalho. Quase não dormi, esperando o dia seguinte: a lição do B.
     Lembro-me dos primeiros livros da minha vida. Minha mãe –sempre paciente, sempre– já havia me mostrado tantas vezes as mesmas ilustrações, contado tantas vezes as mesmas histórias que eu conseguia dizer de cor o que havia escrito em cada página e, de memória, recitava para ela. Talvez isso resuma meu amor aos livros: eu os lia antes mesmo de saber ler.
     Acontece que naquela tarde eu li de verdade. E minhas primeiras letras tinham gosto de bolo de cenoura com calda de chocolate.

13 comentários:

Indelével disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Indelével disse...

Aaah eu tbm "lia" as histórias que a minha mae lia pra mim. Decorava
tudinho exatamente como vc e depois contava pras bonecas ou pro espelho mesmo... Faz tempo!

Amei ler seu texto, muito bom!

Marcio Sarge disse...

Isso me faz sentir saudades do tempo em que eu, pequeno que era, já amava os livros sem ao menos saber ler também.

Gabi disse...

Ainda lembro do dia em que aprendi a escrever meu nome.Repeti umas trocentas vezes num caderninho cor-de-rosa e mostrei pra cada um que chegava em casa.

O melhor de tudo,com toda a certeza do mundo,é o gostinho de bolo de cenoura com calda de chocolate.Nada paga.

;*

Barbarella disse...

Ahh lembrei também da minha infância, têm cheiro de morangos.

Lembrei de algumas frases do Gabo:

"A vida não é a que gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la".

e

"...que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e graças a esse artifício conseguimos suportar o passado."

bjos

Stephanie disse...

da minha infância e o primeiro encantamento com os livros, me vêm a cabeça a minha mãe fazendo pontinhos pra que eu os cobrisse: eram as letras do meu nome, as primeiras que conheci, antes de aprender a ler -

e uma estante enorme, que ficava na sala do apartamento onde cresci, do chão ao teto, com várias coleções enciclopédias romances e eu olhava aquilo tudo pensava: ah, um dia eu ainda leio esses livros todos (eu já era uma criança estranha, hahaha)


lembra do meu blog, Bruno? então, passa lá que tem presente pra você.

beijo!

Stephanie disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lari Bohnenberger disse...

Hum, que delícia de texto!
Eu não consigo me lembrar de quando li pela primeira vez. Vou perguntar pra minha mãe. Quem sabe ela se lembre. Quanto à relação com os livros, eu tenho uma foto minha, com uns três anos de idade, acredito, deitada na cama da minha mãe, com um livro dela abreto na minha frente, e os olhos arregalaaaaados... o livro estava de cabeça pra baixo! Mas isso era um mero detalhe!
Rssss!
Bjs!

Magnum Opus disse...

Há qto tempo não aparecia por aqui...
É engraçado qdo a gente é criança gosta de coisas repetidas tipo ouvir a mesma história ou assistir ao mesmo filme várias vezes mesmo sabendo toda a história...

Isabela Quintão disse...

uhm, dexa eu ver...
sobre a minha infância?
não lembro de ninguém lendo pra mim... pra falar a verdade, a maior parte das minhas lembranças são do vidro de trás do carro...

a primeira palavra q lembro é uma que eu lia todo dia: pharmácia, achava lindo...
e lembro das minhas três expulsões do maternal, mas aí é o vidro da combi, e eu do lado de fora..
então foi aí que comecei a desenhar, já que tinha material, e ficava em casa o dia inteiro..
e das cidades em que morei, q admito, só perdem pra a quantidade de escolas...
adoro minha infância, e os passeios na casa da minha avó mineirinha, que cheiravam a pão de queijo...

ah, vê se não some viu... ;*

Mariliza Silva disse...

eita que voce conseguir estar mais sumido que eu!rsrsrsrs

Passei para deixar um grande abraço

Some não, viu!

Mariliza

Anônimo disse...

Uai!
Parabéns pela leitura... eu estava ali na grama, quando senti o cheiro do bolo de cenoura e do chá que é sempre pontual.

Ainda bem que muitos ainda escrevem as suas palavras.

Grandes palavras General!

Leo disse...

Caminho Suave...
Eu lembro dessa cartilha. Foi onde também aprendi a ler, olhando o livro que na verdade era do meu irmão que já estava na escola. Boa lembrança e bela história.