26.9.07

Dia sem carro

Deu que, no fim das contas, pressionado pela dona Eulália, que comprou a idéia da Marcinha —militante política, ativista do Greenpeace, essas coisas—, seu Glicério aderiu ao dia sem carro. Não lá de muito boa vontade, sejamos francos, mas aderiu.
     O contra-plano dele era simples: ficar em casa o dia todo para não ter de submeter-se a esses meios de transporte alternativos, para os quais ele não tem mais idade e nem paciência. Acontece que dona Eulália queria ver o netinho, apareceu na sala de bolsa e vestido de passeio e não teve Cristo que convencesse a mulher a sentar e assistir o documentário dos leões na tevê.
     E lá foi nosso amigo fazer o que não fazia há anos: andar de ônibus. Chegou no ponto bufando, quatro quadras depois, e, quando se encostou ao poste procurando algum ar para jogar para dentro dos pulmões, foi alvejado por uma velhinha:
     — Ai, que eu estou aqui faz umas duas horas e nada de ônibus. E, ai, que eu sou hipertensa e os remédios andam custando uma fortuna e as minhas pernas me ficam desse tamanho, meu Deus!
     Seu Glicério só grunhiu em resposta à senhorinha de meias de lã e carrinho de feira. Mas dona Eulália não sabe recusar conversa:
     — Nem me fale, menina, é uma pouca vergonha...
     Ferraram as duas num papo de ônibus que não chegam, motoristas que freiam bruscamente e jovens que não cedem lugar. Quando apareceu o bendito coletivo, nosso amigo agarrou, de mau humor, nas alças da porta e içou o corpo para dentro. A velhinha ficou.
     — Vai lá, Glicério, ajude a senhora a subir o carrinho.
     Ele começou a contar até dez, mas não chegou nem ao dois. Dona Eulália —que sabe que o marido é homem de bom coração, mas às vezes precisa um incentivo para isso— empurrou-o, junto com o motorista, já mobilizado por ela, escada abaixo. Nesta altura da nossa história, seu Glicério não sabia mais se bufava de raiva ou do esforço de subir o carrinho com três melancias dentro —ai, meus netinhos adoram melancia, mas o feirante me cobrou os dois olhos da cara nelas, são todos uns safados.
     Velhinha embarcada e sentada, ele fuçou na carteira capanga que carregava debaixo do braço e esticou uma nota de cinqüenta ao cobrador.
     — Ih, não tem troco, não, amigo.
     Seu Glicério respirou fundo, baixou a cabeça e levou a mão à testa. Dona Eulália, anos de praia, já sabe: essa é a deixa para ela entrar em cena. E mais que rápida, antes que ele explodisse, jogando indignação e a pressão lá na estratosfera, ela tirou da bolsa um saquinho de crochê e achou ali umas moedas. Passaram pela roleta. Dona Eulália conseguiu o último assento, ao lado da velhinha, e nosso bom amigo foi em pé, o carrinho lhe batendo nos calcanhares a cada curva.
     No andar da carruagem —mais para carroça—, a úlcera do seu Glicério foi contabilizando tudo: cinco batidas do carrinho de feira, solto à deriva no corredor do ônibus, no calcanhar, cinco mochiladas do garoto de fone de ouvido, coisa de uns sete encontrões da moça que não conseguia segurar-se e em torno de doze paradas mal calculadas pelo motorista. E claro que ele teve de ajudar a descer as melancias.
     Depois de mais três quadras de caminhada relativamente sem nenhum incidente, exceto um pincher que tentou morder o seu Glicério, nosso simpático casal chegou na casa da filha. Conversaram, almoçaram, dona Eulália brincou com o neto, seu Glicério irritou-se com o genro, o de sempre. E, no fim da tarde, quando foram recolhidas as xícaras do cafezinho, ele decretou, para o horror da Marcinha:
     — Agora voltamos de táxi. E que se dane se os ursos polares estão se afogando no Pólo Norte.
     Seu Glicério não se conforma: o mundo tinha que acabar bem na vez dele?

21.9.07

Dia-a-dia #1

Hoje notei como aos poucos vou inventando moda para complicar minha vida. Para sair de casa, todo santo dia, pego carteira, chave, crachá, óculos escuros, celular e iPod —e blusa, que o clima de Curitiba é tão confiável quanto senador da República. Era tão mais fácil quando eu saía para brincar na rua, de mãos abanando.

Filmes #2

Engraçadas essas fases da vida. Teve época em que eu assistia filmes tristes, época de filmes alternativos, de filmes underground, filmes clássicos —já de comédia romântica nunca gostei. Já hoje em dia só quero saber de porrada e bang-bang. Se o diretor usar menos de 50 litros de sangue falso na gravação, não vale minha audiência. Ando meio preguiçoso, intelectualmente falando.

19.9.07

Solidariedade pirata

Ontem eu voltava do banco preocupado com o saldo da minha conta quando dei com o capitão Joe Náufrago gritando impropérios e brandindo seu sabre contra umas velhinhas que saíam de um bingo beneficente. Ele correu ao meu encontro com um daqueles sorrisos francos, como só os piratas de alma mais negra sabem dar, enquanto gritava que eu era um maldito verme covarde de terra firme.
     — Só aponte o bastardo pederasta que lhe deixou chateado, irmãozinho, e eu farei a alma do desgraçado se contorcer de agonia a caminho do fogo do inferno.
     — Não, capitão, não foi ninguém. É que eu ando meio mal de grana, gastei demais, sabe como é.
     Concordo que capitães piratas podem não parecer excelentes companhias assim à primeira vista. Mas a verdade é que não há ninguém melhor para se ter ao lado num momento de dificuldade, especialmente quando se quer afogar as mágoas numa garrafa de rum.
     — Arrr! Mas por que não me contou antes, com mil serpentes marinhas, seu monte de ossos imprestável? Você e essa maldita timidez, rapaz!
     Pois na mesma hora o bom e velho capitão Joe desatarrachou a perna de pau e tirou de um compartimento secreto uma faca e uma bolsa tilintante de dinheiro. Esticou-me a bolsa com uma mão e apontou-me a faca com a outra:
     — Mas eu juro pela alma da minha mãezinha que arranco seu fígado com uma colher e jogo aos meus peixinhos dourados se não me pagar, seu cachorro imundo.
     Agora só não sei onde trocar dobrões de ouro espanhol por dinheiro corrente.

14.9.07

Manhã de esses

Sempre sossegado,
o sabiá assobia
ao nascer do sol.

12.9.07

Conto de fadas brasileiro

Era uma vez um país que vivia de brincadeira. Gostavam de uma brincadeira que só eles. E, depois do futebol, a brincadeira que eles mais gostavam era a da mentira. Era como se vivesse num eterno primeiro de abril, o país.
     A coisa toda era muito simples: ganhava quem mentisse mais. Mas não bastava só mentir, tinha de mentir e fazer os outros acreditarem. Como todo jogo, tinha lá uma meia dúzia de craques, macacos velhos já, não tremiam a voz e nem davam risada enquanto brincavam, juravam pela mãezinha que era tudo verdade.
     E, de tempos em tempos, o país se mobilizava em organizar os campeonatos. Era meio como nos jogos de colégio: concursos municipais, estaduais e um grande campeonato federal. Times eles tinham vários, e para todos os gostos, de todas as cores e com vários mascotes.
     E o povo tanto gostava da brincadeira que colocava os participantes para aparecer na tevê e no rádio, no melhor horário disponível, em todas as emissoras. E todo mundo parava de ver a novela só para ouvir, boquiaberto, as melhores mentiras do país.
     Alguns diziam:
     — Eu vou acabar com a fome neste país.
     E o povo aplaudia e ia ao delírio. E outros falavam:
     — Nenhuma criança vai ficar fora da escola.
     E o povo achava o máximo e corria e levava as crianças para ganharem beijos quando os concorrentes passeavam nas cidades.
     E, na brincadeira, se um prometia um milhão de alguma coisa, o outro corria para prometer dois e um outro ainda dizia que ele sozinho já tinha criado três. E um chamava o outro de mentiroso, mas o outro negava e jurava que isso era uma calúnia, minha Nossa Senhora. E tudo era só alegria. E o povo acreditava em tudo.
     Quando chegava a época do grande concurso, lá para outubro, o povo se perdia em meio a sorrisos e não sabia em que mentira acreditar, porque todas elas eram sedutoras. E o povo ganhava papéis e bandeiras e favores e até dentaduras porque nessa brincadeira, competir não valia nada, o que valia mesmo é ganhar.
     E então chegava o grande dia e o povo todo corria para escolher seus favoritos. O mais bonito, o mais inteligente, o mais simpático, cada um escolhia o seu. Chegaram até a criar um enorme sistema informatizado para saber o resultado no mesmo dia, tanta pressa que tinham para saber quem era o novo campeão.
     E com o resultado nas mãos, o povo corria e carregava os vencedores, entre vivas, para salinhas com secretária, ar condicionado e motorista. Porque, de tanto que o povo gostava da brincadeira, eram os vencedores que mandavam no país.
     E, de vez em quando, mesmo depois de acabado o campeonato, os esportistas apareciam na tevê e diziam alguma mentirinha, assim só para não perder a forma. Às vezes, algum acusava o outro de roubar na brincadeira e, oh!, o país parava para ver a briga dos sujeitos. Mas, no fim das contas, todo mundo se abraçava, pedia uma pizza pelo telefone e vivia feliz para sempre.

10.9.07

Diários de um sapo

Que inclusão social, que nada: ser sapo hoje em dia é estar à margem da sociedade. Os humanos, que carregam não sei por quê esse sentimento de serem os donos do mundo, projetaram as cidades somente para eles. Nada numa metrópole foi feito visando o conforto de um sapo. Nada.
     Não existem armações de óculos para o rosto sem nariz ou orelhas de um sapo. Tive de pagar para adaptar meu carro porque meus braços curtos não alcançam o volante. Levo minhas calças ao alfaiate porque as das lojas não foram feitas para nossas longas pernas elegantes. Tenho de ir a uma farmácia especial para manipular meu protetor solar para pele extra-úmida.
     Os restaurantes, além de não servirem um cardápio satisfatório, ainda têm o péssimo costume de espantar as moscas de cima dos pratos. E as madames, concentradas em facas garfos colheres taças copos e salamaleques, olham enojadas se vêem alguém usar a língua —quer coisa mais natural?— para se servir.
     Não bastasse, todo mês tenho de explicar a um inspetor sanitário que a água no meu quintal não é um criadouro de mosquito da dengue, mas o berçário dos meus girinos recém-nascidos. E isso porque não tocarei no incidente desagradável que aconteceu quando, num dia quente, resolvi refrescar a pele no chafariz da praça.
     Não se pode mais ser sapo com dignidade hoje em dia.

6.9.07

Joe Náufrago

Admito que quase morri de susto quando dei de cara com um pirata na calçada de casa. Ele dava rum a um vira-lata, bêbado e malcheiroso feito um gambá —não o cachorro, o pirata. Mas, como ele ofereceu um sorriso franco, mostrando cordialidade e dois dentes de ouro, e ameaçou me jogar aos tubarões se eu fugisse, acabei me apresentando.
     Desde então, eu e o capitão Joe Náufrago somos amigos. E ele, velho lobo do mar, compartilha comigo sua sabedoria de quem, com seu único olho, já viu de tudo no mundo.
     — ... e então o gerente me disse que o boneco que vinha de brinde já estava esgotado.
     — Com mil demônios! E o que você fez, rapaz?
     — Nada. O que é que eu poderia fazer, ué?
     — Diabos, bastardo nenhum rouba o capitão Joe Náufrago. Eu teria incendiado a loja e enforcado o sodomita imundo nas próprias tripas. Arrr!
     — Mas veja, capitão, ele me deu duas balinhas grátis.
     — Hum, duas balinhas são oferta de se pensar... neste caso, irmãozinho, eu daria uma chance ao homem. Só incendiaria a loja.
     Ele não é lá muito tolerante, mas é um bom sujeito.

Literatura #1

Escrevendo a história do escultor, lembrei de quando levei seis meses para ler a Divina comédia, entre idas e voltas. O inferno é legal, tem ação, drama, suspense e terror; o purgatório é meia boca, até diverte em certos trechos, e o paraíso é —perdão, Senhor, juro que é só literariamente falando— um porre. Dante fez um baita anti-marketing do Reino de Deus.