30.1.07

Quem planta, colhe

Segunda-feira. Dr. Almeida não dormiu nada por causa da úlcera atacada. Chegou na repartição chispando. Entrou no escritório, fechou a persiana, amarrou a cara e sentou na cadeira, disposto a não fazer nada até o fim do expediente.
     Não passou nem cinco minutos e a dona Valéria entrou. Queria só uma assinatura do chefe, mas saiu com uma meia dúzia de impropérios por ter entrado sem bater. O Almeida é careca, mas soltou uns palavrões bem cabeludos.
     Revoltada, dona Valéria saiu da sala do Almeida pisando firme no salto. Pegou os papéis assinados e jogou na mão do Pingüim, o motoboy. O Pingüim, que tinha esperanças de um dia tomar um chopinho com a dona Valéria, não gostou nada do tom de voz.
     No trânsito, o Pingüim virou um diabo. Nem queria saber mais de chopinho. Praguejava ao mesmo tempo que costurava no trânsito. Pensou que passaria, mas não passou no meio de dois carros e arrancou o retrovisor da Elisabete, que retocava a maquiagem.
     A Elisabete, sempre medrosa, sempre desesperada, ficou nervosa e deixou o carro morrer. O trânsito começou a andar e ela ali. Foi o Jorge quem começou o buzinaço. A Elisabete acabou arrancando de ré sem querer e, pronto!, carimbou o carro do Jorge.
     Com pressa, o Jorge deixou o cartão e saiu. Bem na hora, o celular tocou. A Dê queria saber quando eles iam se ver de novo e essas coisas. Ele, que não estava mais com humor para papinho no telefone, disse que ligava depois. Desligou praticamente na cara da moça.
     A Dê levou a mal o "ligo depois" e pensou que todos os homens são iguais mesmo. Ela nunca devia ter olhado para aquele safado. Estava com o Luli no colo e apertou o pobre do cachorrinho no momento da raiva.
     Na hora do passeio da tarde, o Luli, que tinha até psicólogo porque era estressado, acabou vendo o Gui, que brincava com a dona Mirtes do 312, no playground. Estava louco para descontar o apertão que levara. Não deu outra: pulou do colo da Dê, latiu e tascou os dentes no menino.
     O Gui era a razão de viver da dona Mirtes, primeiro netinho, o filho do caçula. O garoto nem bem se assustou, quanto menos tomou a mordida, porque o Luli nem era tudo isso, mas ela ficou preocupadíssima. Pegou o menino, escreveu um bilhete para o marido e saiu para o pronto socorro.
     Mais tarde, Dr. Almeida chegou em casa e só encontrou o bilhete da esposa na porta da geladeira contando a história do Gui e dizendo que não tinha janta. Desceu no boteco do Manoel e comeu um croquete e uma coxinha com molho de pimenta. Batata (não, ele não comeu batata, é modo de dizer): quando se deitou estava com a úlcera que era uma bola de fogo.

* * *
Terça-feira. Dr. Almeida não dormiu nada por causa da úlcera atacada, etc etc etc.

24.1.07

Banheiros

— Velho birrento... humpf! Quero ver se chega na minha idade com a minha disposição.
     Seu Glicério mastigava um pão com margarina para ajudar a engolir a última. A filha chamara de birra de velho algumas maldições e praguejamentos - tudo muito justo - que nosso amigo resmungava nesta manhã de segunda.
     Mas a birra de nosso amigo tinha motivo, e era o banheiro. Agorinha há pouco, enquanto escovava os dentes, quase tinha atravessado o box com o cotovelo. Tudo culpa de Dona Eulália, que o convencera a trocar a casa pelo apartamento novo:
     — Além de tudo, fica mais perto da Marcinha e é mais fácil de limpar.
     Seu Glicério tinha saudades do tempo de moleque, quando os construtores sabiam dar a importância que um banheiro merece. Um banheiro de verdade, não os toaletes e lavabos de hoje em dia. Parece que até o nome banheiro estava para ser esquecido.
     Banheiro bom tinha as paredes ladrilhadas até a metade da altura. De azulejos brancos, não esses mosaicos caleidoscópicos - e nessa hora seu Glicério se perguntou quando fora a última vez que vira um caleidoscópio, mas isso é outra história - que a gente vê hoje. Porque ninguém vai no banheiro para ficar olhando os desenhos dos azulejos. E porque os pedreiros nunca acertam os desenhos mesmo.
     E as simpáticas cortininhas de bolinhas amarelas? E o anti-derrapante emborrachado embaixo do chuveiro? Não, nesse mundinho antisséptico sem sal de hoje em dia não há lugar para isso.
     Num banheiro de verdade, um homem poderia gastar sem aborrecimento toda uma manhã de domingo. Barbear-se num pia onde se possa dispor lâmina, pincel, loção e uma vasilha de água quente. Ouvir - e cantar - o Adoniran no radinho colocado em cima da sapateira. Banhar-se como um rei elefante, espirrando água para todos os lados. E ler quase inteira a gazeta, deixando-se os classificados para a hora do café.
     Porque nos bons tempos, dizia, a pessoa fazia até exercício no banheiro. Era possível caminhar da pia até a banheira, passando pelo vaso e pelo bidê. Aliás, pensava nosso amigo, será que esses jovens sabem para que serve um bidê?

17.1.07

Sede

O cão vira-lata
não encontra nenhuma poça.
- Alguém aí tem água?

13.1.07

Gabriel

Eu estava sentado no ônibus, pensando sabe-se lá no quê, quando me jogaram algo no colo. Distraído que estava, nem reparei quando entrou o menino gordinho que distribuiu a todos os passageiros um pirulito e um bilhete.
     Talvez não faça tanta diferença dizer que especialmente naquele dia eu não estava para papo, quanto menos para bilhete. E, não vou mentir, li mais por mania de ler que por interesse, mesmo porque eu só tinha dez reais para passar o resto da semana - pagamento não dura muito tempo na minha mão.
     "Meu nome é Gabriel e tenho sete anos. Fora do horário escolar, eu ajudo minha mãe porque estamos passando necessidade por falta de trabalho. Você pode comprar este doce que eu lhe entreguei pela quantia que seu coração mandar. Porque só é vencedor aquele que vence sem derrubar ninguém."
     Admito que a primeira coisa que me passou pela cabeça foi "como pode alguém pobre assim escrever tão bem?": preconceito idiota meu. Era um pedaço de papel escrito à mão, com letra bonita de mulher, e cortado com capricho. Montado numa folha e reproduzido numa máquina de segunda. Mas o que me derrubou, o que me jogou na lona foi a última frase.
     "Só é vencedor aquele que vence sem derrubar ninguém". Pensei em quantas vezes aquele menino ali não teria sido derrubado. Quantos vencedores já não se fizeram às custas dele?
     No fundo do ônibus algumas moedas tilintaram. O menino vinha pegando de volta os bilhetes e vendeu um pirulito a alguns poucos centavos. Daria para dois ou três pães no fim do dia. Quantos desses meninos eu já não derrubei para tentar ser vencedor?
     Vencedor naquele dia, naquele ônibus era ele, e só ele, o menino que vendia pirulitos, fora do horário escolar, para ajudar uma mãe desempregada a quanto o coração das pessoas mandasse. Só que os corações mandam muito pouco. Quantos meninos eu já derrubei, quantos?
     Tive vergonha de poder esticar somente a nota de dez reais, a que tinha na carteira. Uma oferta pelo pirulito que ele aceitou sem pestanejar, e com um sorriso que me fez perder qualquer resto de mau humor. Acho que teria dado a ele de bom grado todo o meu pagamento do mês, se já não o tivesse gasto em besteiras vinte dias antes.
     Porque naquele dia, mais que o gosto do doce na boca, aquele menino, aquele anjo Gabriel gordinho de sete anos, me deixou uma lição que eu queria nunca esquecer: "só é vencedor aquele que vence sem derrubar ninguém."
     Ou talvez eu que estava muito sentimental.

10.1.07

Acepipes e guloseimas

Sempre foi um mistério para mim o apelido do tio Careca. Porque ele tem cabelo, e, olha, não é pouco e nem parece que vai cair tão cedo. Mesmo assim, desde que eu me conheço por gente, ele é o tio Careca. Mas não é essa história dele que eu quero contar.
     O tio Careca é uma figuraça,tem uns amigos mais figuras ainda, ia para Minas de moto carregando minha avó na garupa, e é doente por esporte —assiste desde a Copa do Mundo de Amarelinha até a segunda divisão do Campeonato Azerbaijano de Cuspe à Distância. E, como todo grande figura, claro que ele tem todo um vocabulário próprio. Dá para editar, tranqüilamente, um dicionário de tiocarequês. E os verbetes que eu lembro assim de bate-pronto são "acepipes" e "guloseimas".
     Diz minha avó que o tio Careca come até pedra —do que eu, particularmente, não duvido muito—, mas ele é chegado mesmo nuns acepipes.
     Sempre que sentávamos para assistir algum filme, ou jogo, ou corrida do Ayrton Senna —F1 depois dele perdeu a graça—, ou seja lá o que fosse, ele fazia a mesma coisa. Esfregava a ponta dos dedos, como quem quer definir alguma coisa e não consegue, e pedia:
     — Mas será que não tem aí uns acepipes, umas guloseimas?
     Tudo bem, escrevendo nem parece muito engraçado, admito. Mas quem presenciou a cena —quem sabe eu não consiga um vídeo?, o YouTube está aí para isso—, com a voz e o bico que ele fazia não tinha como evitar a risada. E arranjar logo os acepipes.
     Na definição dele, acepipes são salgados e guloseimas, doces. Acepipes podem ser uns amendoinzinhos —ainda mais se forem aqueles ovinhos—, uns salgadinhos, um queijinho, uma azeitoninha —sim, nome de acepipe é sempre no diminutivo. Já as guloseimas acompanham os acepipes e vão de uns bons chocolates a umas coloridas jujubas, passando por tudo o mais de porcaria que a mente humana já conseguiu inventar.
     Além dos acepipes e das guloseimas, o tio Careca se saía com umas outras de que eu não me esqueço: foi invenção dele brincar de dormir, por exemplo. Por outro lado, foi ele quem me ensinou a ser petista e olha no que deu.
     Enfim, contei tudo isso para explicar o nome do blog.

5.1.07

Os piores venenos são os doces

Os piores venenos são os doces
Os amargos não escondem o que são, só os toma quem quer morrer
Dos azedos se bebe um pouco todo dia, e não matam ninguém
Salgados, se existem, são inofensivos

Os piores venenos são doces, e bem doces
Falam com vozes de ternura, piscam com olhos de meiguice
Desenham rótulos de flores nas garrafas de vidro colorido
Se deixam tomar suaves e acariciam a garganta

Os piores venenos são com certeza doces
Não são como os outros, bandidos, que arrancam as coisas
Não precisam roubar: há quem mate e quem morra por eles
Cedo ou tarde ganham o que desejam em bandejas de prata

Os piores venenos deixam na boca um gosto doce
A quantos já não submeteram com seus caprichos?
Quantos já não se enredaram na sua teia de mentiras?
Ah, mas uma mentira vinda deles soa mil vezes bela...

Os piores, mais cruéis venenenos são doces
O que mata não é tê-los bebido, mas não poder mais bebê-los
Com o mesmo sorriso com que seduzem, eles um dia desprezam
Vão embora e continuam doces, inalterados, insensíveis

Há quem culpe o amargo, o azedo da vida de matar os homens
Mas acontece que os piores venenos são os doces

1.1.07

Ano novo, vida velha

I
Não se ouve as promessas
encobertas pelos fogos.
Quem as cumprirá?

II
Hoje devia ser
(arrumem no calendário)
primeiro de abril.