25.12.06

Flauta de Pã

A Dona Eulália não entende. Não é que o seu Glicério não goste do Natal. Ele monta presépio com olho d'água de verdade, prepara sua farofa especial, vai à missa e tudo. O que ele não gosta é das músicas de Natal. Ser surdo até o dia de Reis é tudo o que ele pediria ao bom velhinho, se lhe escrevesse uma cartinha.
     Hoje em dia, nosso amigo dá graças aos Céus pelos filhos já serem grandes. Como ele mesmo diz: "o pior já passou, agora é só fugir do país quando os netos chegarem na idade, e já está quase". Porque quando as crianças eram pequenas, seu Glicério ia quase amarrado às apresentações da escolinha. Enquanto as mães ouviam deleitadas, ele fazia caretas e se contorcia na cadeira. Todo dia das mães, dos pais, Natal, Páscoa e festa junina era o mesmo suplício.
     —­ Ai que essas vozinhas ainda me arranham o cérebro.
     —­ Mas são seus filhos, Glicério.
     —­ Sim, mas não são cantores.
     Ou então:
     —­ Bem que podiam estar dublando uma do Nelson Gonçalves.
     —­ Dublando, Glicério? Tadinhos, eles ensaiaram por três meses.
     — E eu não sei? Passei os últimos três meses ouvindo “brilha, brilha estrelinha” na hora do banho!
     E ainda:
     —­ Mas olha que lindo ele ficou de anjinho.
     —­ A asa de anjinho ele tem, só esqueceram de tirar a voz de capetinha.
     —­ Credo, isso é até falta de espírito cristão, Glicério.
     —­ Não é, não, com essas vozinhas aí não tem cristão que agüente.
     E todo fim de ano era a mesma coisa. As professoras - que naquela época ainda se podia chamar de tias - ficavam à frente, fazendo os gestos para que as crianças imitassem; a tia Cotinha, uma senhora surda de setenta e dois anos, dava o tom e acompanhava no piano; as mães choravam enquanto batiam fotos e então vinha o gran finale — ou o golpe de misericórdia, no ponto de vista do seu Glicério —, e as mães ficavam em polvorosa: o concerto da bandinha de Natal.
     —­ Olha lá! Agora ele vai tocar harpinha.
     —­ Pois duvido que os anjos toquem mesmo harpa no Céu. Ah, Deus não haveria de permitir isso. Ele é um homem que tem bom ouvido pra música, senão não teria feito o Noel Rosa.
     Dona Eulália fez cara feia, que isso já era blasfêmia. Mas, quando viu o último instrumento que entrara no palco, ele blasfemou mais:
     —­ E essa flautinha de Pã deve tocar é no inferno!

4 comentários:

Anônimo disse...

Vou reeditar o seu Glicério também. Ele merece estar no blog novo.

Monize disse...

AAhhhh eu sem bem como é... E no final das contas tive que ficar procurando musiquinhas de natal pra minha mãe deixar tocando durante a ceia... ninguém merece!!! hauhauahuaha

Anônimo disse...

Tava com saudades do seu Glicério

Fernando disse...

Hahaha... sempre no ponto, sempre exato esse Glicério! Eia homem dotado de razão! Quem aguenta essas vozes desmelinguidas infantis só pode ser um mártir... ótimo.